quarta-feira, 9 de julho de 2008

Balanço cinematográfico


Neste primeiro semestre de 2008 os filmes que chamaram a atenção foram:
Into the wild (Na natureza selvagem), de Sean Penn. Retrato pungente e sem concessões de uma experiência radical, à la Thoureau em seu Walden: a busca pelo isolamento do contato humano, o refúgio na natureza como forma de transcendência. Um road movie que, além de tudo, tem a belíssima trilha sonora de Eddie Vedder.

Cassandra’s dream, de Woody Allen. Ele volta com tudo a Londres e a Dostoievski para mais uma tragédia moderna, no estilo de Match Point. Haja fôlego.

L’age des tenèbres, de Denys Arcand. Foi apelidado de “A era da inocência” no Brasil, mas o nome original é muuuuito mais adequado: A era das trevas. Alegorias medievais, problematização da fantasia e das estruturas burocráticas, é Denys Arcand fechando brilhantemente a trilogia que começou com o chato “O declínio do império americano” e engrossou em “As invasões bárbaras”.

Dois filmes “menores”, mas muito simpáticos também merecem ser lembrados:
Once (Apenas uma vez). Irlanda, de novo. Música, como sempre. Uma interessantíssima história de amor sem beijos, de emoção suspensa e delicada. Para quem odeia “comédias românticas musicais” e para quem as adora. O ator principal é o guitarrista no lendário The Commitments. O país do sotaque mais charmoso do mundo continua produzindo belos filmes.

My blueberry nights bem que podia se chamar Noites Azuis, mas recebeu o infeliz título de “Um Beijo Roubado”. Claro, vão dizer que Wong Kar Wai se vendeu para Hollywood, que ficou comercial e tal, como sempre dizem. Mas há muita coisa ali, isso há. Além da fotografia inconfundível, há temáticas diversas ao redor do eixo da busca da identidade e da superação da dor. O “caminho mais longo para atravessar a rua” é muito fértil e saboroso.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Minha Itália


Morar no Rio Grande do Sul é necessariamente repensar a Itália nossa. Para um brasileiro padrão e para boa parte do mundo a Itália é uma terra latina, passional, terra de artistas, inventores, gente extrovertida e comunicativa. Gente como o sonhador e desvairado Fellini, o refinado e contundente Lampedusa, o inigualável Ítalo Calvino, sem falar em todos os mestres da renascença e tantos outros que nos últimos oitocentos anos ajudaram a tornar o mundo um lugar mais inteligente, interessante e criativo para se viver.

Pois a Itália daqui não é nada disso. Ser “italiano” aqui é quase sinônimo de ser provinciano. É viver sob uma “ética do trabalho” que dispensa o pensamento que não sirva à produção e acha que arte e filosofia são coisa de gente desocupada e nociva à sociedade. É ser Weberiano sem ser protestante nem precisar ler livro algum, e nem sequer imaginar quem é Weber. É sentir desprezo por essa gente “preguiçosa” e de pele escura que eles chamam de modo excludente de “brasileiro”.

Racismo e sensação de superioridade em relação aos de pele escura não é privilégio deles, é moeda corrente em todo o mundo ocidental, inclusive na verdadeira Itália. O diferencial dos pretensos italianos do sul é que eles ignoram o outro lado: o da criatividade, da racionalidade, da grande contribuição que a verdadeira Itália sempre deu ao mundo civilizado. A minha Itália não é uma terra de agricultores provincianos e racistas. A minha Itália é uma terra de luzes, de Leonardo da Vinci, de Michelangelo, de Umberto Eco, Antonioni, Vittorio de Sica... Uma terra que pode até eleger um Berlusconi ou acumular lixo nas ruas de uma das principais cidades, mas uma terra de gente com idéias, com atitude, gente que é parte de tudo o que de melhor a humanidade já produziu.

Para não parecer tão amargo nem tão pesado, vamos dar crédito às coisas boas de nossa pseudo-Itália sulista. Eles trouxeram ao país a bela tradição do vinho, a comida maravilhosa e o melhor suco de uva do mundo. Bem que podiam ter trazido também a verve poético-anarquista-humanista que tanto caracterizou a Itália historicamente.

domingo, 6 de julho de 2008

Demonstração de Força


Era uma noite de inverno em Porto Alegre. Caminhei sozinho pelas ruas da Cidade Baixa, a região boêmia da capital. Meus amigos daqui, ironicamente, são brasileiros demais para ter o rock circulando nas veias. Não se abalariam do conforto de suas casas em uma noite como esta para ver uma banda cult de Liverpool. Fosse um samba, um frevo, um maracatu e eu teria companhia. Mas ao chamado ancestral do rock apenas eu respondo.

Ao meu lado, invisíveis, Marcinha e Baratão seguravam uma garrafa de vinho. Paulo Gótico contava alguma piada, Eddie e Marquinho riam. Wagner caminhava com um sorriso cínico, Renato conversava com o Ivaldo, Darlene ficava ansiosa e Adriana acendia um cigarro. Era apenas eu na Rua José do Patrocínio, éramos todos nós na Avenida Nazaré. Durante a semana eu bem que notei que os cavalos da cidade pareciam estar dançando, e a lua tinha se pintado de cores assassinas, antecipando a chegada deles.

Ian Mcculloch sempre gostou de cantar no Brasil. Desde aquela distante primeira vez em 1987, ano em que conheci a banda. Recentemente um amigo esteve em Belém e trouxe meus preciosos vinis, que incluem todos os do Echo dos anos 80. Um verdadeiro tesouro de trezentas peças reencontrado. Em 2008 os vinis do Echo & The Bunnymen estão completando 20 anos - coisa boa que fiz foi colocar sempre a data de compra. Para comemorar estas duas décadas nada melhor que um belo show, com todas as músicas clássicas, algumas de novas e mais uns covers de gente que vale à pena.

O Opinião estava lotado, a maioria do público com seus trinta, quarenta anos. Um ou outro adolescente perdido, mas nem vestígio de emos e outros animais contemporâneos. Antes do show, música pop dos anos 80. Nada da caricatura que querem vender como a imagem oficial da década. Os coelhos de Liverpool representam um lado dos anos 80 que a mídia atual prefere ignorar. Um lado refinado, poético, intenso, longe da imagem engraçadinha e meio ridícula vigente nas tais festas anos 80, cheias de cabelos ensebados, teclados chinfrim e roupas brega. Contra essa babaquice o melhor antídoto é a demonstração de força dos Bunnymen.

Depois de meia hora de espera a platéia já excitada recebeu Ian, Will e companhia. A abertura perfeita, a primeira música do primeiro disco: Going up, seguida da paulada de Rescue e de Villier’s terrace fazendo o bloco Crocodiles. Os arranjos cheios, densos, com duas guitarras, bateria, baixo e um teclado à la Ray Manzarek. A voz do Ian, ao contrário do que eu esperava, soou potente e vibrante, mostrando que mesmo após vários cigarros e caipirinhas ele dá conta do recado.

Após balbuciar algo sobre tocar no Brasil e sobre futebol, que a gritaria da platéia não me deixou ouvir, eles mandaram uma das músicas mais contundentes e simbólicas de seu repertório: Show of strength, que abre o álbum Heaven up here. A prova definitiva de que a psicodelia pode ser musculosa, de que o rock está impregnado da verve mais pulsante do fazer poético, e de que por trás de cada riff de guitarra, de Chuck Berry aos Strokes, ressoam as vozes de Rimbaud, Baudelaire, William Blake e tantos mais.

Ao vivo eles conseguem fazer canções como Dancing horses, Silver e Seven Seas soarem ainda mais fascinantes, mais cheias de nuances. O público pede The killing moon e Lips like sugar, mas antes é brindado com belas versões de The cutter e da recente Stormy weather, que muita gente canta junto. Os quatro pilares da música dos Bunnymen ficam claros nas citações e covers: David Bowie, Lou Reed, Jim Morrison e John Lennon. Após uma hora e meia de show eles voltam para o bis com Lips like sugar e Nothing lasts forever, entremeada de Walk on the wild side, para delírio da platéia.

Outra pausa, outro bis. Desta vez Ian faz todos cantarem e dançarem People are strange, criando um clima jazzístico de cabaré. Em seguida, a última canção da noite faz vários casais se beijarem, imersos em uma atmosfera aquática, lírica e épica: Ocean rain.

Aliás, um dos méritos do Echo & The Bunnymen sempre foi a capacidade de unir o épico ao lírico, com um leve tom de ironia e melancolia. Outra coisa importante: eles sempre foram a minha banda. Joy Division, Smiths, The Cure, R.E.M. e outras que adoro, são bandas de todos. Echo & The Bunnymen é diferente. É a banda que me diz respeito, que eu usaria em uma camiseta; muito do que faz com que eu seja a pessoa que sou hoje em dia. São, enfim, uma parte importante e inalienável de minha própria identidade. Todos que amam música sabem do que estou falando, e têm com certeza a banda ou cantor de estimação. No meu caso, junto aos homens coelhos, existe apenas um: David Bowie.

Saí caminhando tranquilamente pela noite fria, mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta, assoviando sozinho as canções da minha vida.