segunda-feira, 26 de abril de 2010

Pela paz na Internet


Na internet estamos habituados a ler todo tipo de xingamento e discurso de ódio, mas no convívio cara a cara em geral somos mais civilizados. Uma leitura possível sobre essa contradição seria a de que no fundo somos todos bestas agressivas e preconceituosas, e essa “verdade essencial” se manifesta quando não temos o olho no olho. Outra leitura tentaria dar conta dos tipos de discurso específicos para cada contexto, sem se importar com “verdades essenciais”, mas analisando detalhadamente as condições de produção desses discursos. Prefiro a última, evidentemente.
No anonimato de nossos quartos facilmente cedemos às tentações de nos sentirmos poderosos e donos da verdade, sem precisar encarar um conflito de fato. Bom, sabendo disso, e sem querer entrar no campo da análise de discurso, venho propor o seguinte: que a Internet seja como um salão de festa. Explico. Que tenhamos ao escrever aqui neste espaço os mesmos cuidados e ponderações que temos quando estamos em um aniversário em casa de gente que não conhecemos muito bem.
Já há gente demais no mundo “desabafando”, precisamos ir além disso. Vamos desabafar com amigos, parentes, psicólogo, autoridade religiosa, conforme o gosto de cada um, mas vamos deixar este espaço mais limpo, mais criativo, cheio de idéias legais ao invés dessa agressão banalizada.
Eu não respeito quem “tem coragem de dizer o que pensa”. Respeito quem sabe a hora de falar e a hora de calar. Respeito quem abre mão de ficar gritando sua opiniãozinha de criança mimada aos quatro ventos, quem sabe lidar com o silêncio. Quem sabe cair como as folhas nestas tardes curtas de outono. 






.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O senso comum é tri violento


Será que a única coisa que tem essência é a baunilha? Que tudo o que somos é complexo, multifacetado e construído socialmente, que não há uma essência metafísica imutável? Em caso afirmativo, abre-se um campo imenso para a liberdade individual. Imaginem: a cor da pele é apenas um dado genético, nada diz sobre o caráter, as potencialidades da pessoa. O time para o qual se torce, o lugar onde nascemos, a religião ou partido político ao qual aderimos...tudo apenas pequenos elementos que se perdem na complexidade que forma um ser humano. Rotular é isso: escolher aleatoriamente um desses milhares de elementos que nos compõem e dizer que ele é o que de fato nos define.
O que me define como pessoa pode ser uma tarde em que olhei a chuva na Praça da República, mas como isso vai caber no rótulo? Ou o esforço que fiz para comprar um apartamento, o fato de preferir manteiga a margarina... de todo o amontoado por vezes caótico de experiências, sensações, valores e preferências que carregamos, e tudo o que esquecemos, é que falamos quando nos referimos a nós mesmos. E isso tudo pode mudar muito em dois, três ou nove anos.
Deixemos a essência para a baunilha, e tentemos olhar o mundo de modo menos apressado. O senso comum, que nos leva a buscar respostas simples e confortáveis, carrega consigo uma violência real e simbólica muito grande. A preguiça e a má vontade para com a complexidade do mundo têm trazido conseqüências terríveis, a história é rica em exemplos. O senso comum nos leva a excluir, desprezar, ridicularizar e fechar portas.
Ir além disso dá trabalho, eu sei, mas vale a pena: ampliar ao invés de reduzir. Expandir e incluir, ao invés de limitar e barrar. A diferença, ao invés da monótona ditadura dos iguais, o mundo como ele é, não como nossos pais disseram que deveria ser.

domingo, 4 de abril de 2010

Délibáb




Já é uma tradição escrever algo sobre o primeiro vento do outono. Hoje, 4 de abril, o clima volta a ficar civilizado de novo. E este ano uma bela novidade: disco novo de Vítor Ramil. Treze anos depois do antológico Ramilonga, Vítor lança um trabalho só com letras de Borges e do poeta gaúcho João da Cunha Vargas, revisitando e ajudando a recriar o imaginário da milonga. Para aqueles que (como eu) consideram Ramilonga seu melhor disco, este trabalho novo chamado Délibáb é um prato cheio.
Vítor faz milonga do sul e do mundo, com uma entonação própria. Ele não grita, não é ufanista, não quer mostrar que é machão e rei da cocada preta. Ele é sutil. Ele é inquieto e paciente, e vem depurando seu som ano após ano, com disciplina e método, bem ao estilo de sua estética do frio. Não é exagero dizer que é um dos maiores compositores de música brasileira de nossa era.
Nos últimos vinte anos já tive o privilégio de ver e conversar com ele várias vezes, seja em Belém ou em Porto Alegre. E a cada vez sinto o amadurecimento de uma proposta estética, de um artista como poucos em atividade. Ele não foge da teoria, mas também não se deixa ficar cerebral e intelectualóide demais.
Quando falei a ele que vim do norte e me aquerenciei aqui pelo sul, ele disse: “igual o personagem do meu livro”. De certa forma somos personagens de livros de Vítor Ramil, ou talvez ele seja um personagem de um livro nosso. Como alguém da Amazônia pode entender e sentir a milonga como se fosse uma coisa sua, tão próxima como um suco de cupuaçu? De alguma maneira misteriosa não só eu, mas a cidade de Belém tem desenvolvido há décadas, desde aqueles antológicos shows no Centur no final dos anos 80, uma relação peculiar com Vítor Ramil. Fora do Rio Grande do Sul é lá o lugar em que ele mais tem público, que mais quer ouvi-lo e entendê-lo. Isso me causa orgulho.
Ouvi o disco novo apenas duas vezes, pouco ainda para arriscar comentários. Há que se ter paciência, que ouvir com atenção, sentindo finalmente o vento de outono que leva embora aquele verão infernal. Chama a atenção, evidentemente, ele ter um convidado de luxo como Caetano Veloso, e a bela regravação de Deixando o pago, cujos versos encerram este comentário.

“alcei a perna no pingo

e saí sem rumo certo
olhei o pampa deserto
e o céu fincado no chão
troquei as rédeas de mão
mudei o pala de braço
e vi a lua no espaço
clareando todo o rincão

e a trotezito no mais

fui aumentando a distância
deixar o rancho da infância
coberto pela neblina
nunca pensei que minha sina
fosse andar longe do pago
e trago na boca o amargo
dum doce beijo de china...”



.