domingo, 4 de abril de 2010

Délibáb




Já é uma tradição escrever algo sobre o primeiro vento do outono. Hoje, 4 de abril, o clima volta a ficar civilizado de novo. E este ano uma bela novidade: disco novo de Vítor Ramil. Treze anos depois do antológico Ramilonga, Vítor lança um trabalho só com letras de Borges e do poeta gaúcho João da Cunha Vargas, revisitando e ajudando a recriar o imaginário da milonga. Para aqueles que (como eu) consideram Ramilonga seu melhor disco, este trabalho novo chamado Délibáb é um prato cheio.
Vítor faz milonga do sul e do mundo, com uma entonação própria. Ele não grita, não é ufanista, não quer mostrar que é machão e rei da cocada preta. Ele é sutil. Ele é inquieto e paciente, e vem depurando seu som ano após ano, com disciplina e método, bem ao estilo de sua estética do frio. Não é exagero dizer que é um dos maiores compositores de música brasileira de nossa era.
Nos últimos vinte anos já tive o privilégio de ver e conversar com ele várias vezes, seja em Belém ou em Porto Alegre. E a cada vez sinto o amadurecimento de uma proposta estética, de um artista como poucos em atividade. Ele não foge da teoria, mas também não se deixa ficar cerebral e intelectualóide demais.
Quando falei a ele que vim do norte e me aquerenciei aqui pelo sul, ele disse: “igual o personagem do meu livro”. De certa forma somos personagens de livros de Vítor Ramil, ou talvez ele seja um personagem de um livro nosso. Como alguém da Amazônia pode entender e sentir a milonga como se fosse uma coisa sua, tão próxima como um suco de cupuaçu? De alguma maneira misteriosa não só eu, mas a cidade de Belém tem desenvolvido há décadas, desde aqueles antológicos shows no Centur no final dos anos 80, uma relação peculiar com Vítor Ramil. Fora do Rio Grande do Sul é lá o lugar em que ele mais tem público, que mais quer ouvi-lo e entendê-lo. Isso me causa orgulho.
Ouvi o disco novo apenas duas vezes, pouco ainda para arriscar comentários. Há que se ter paciência, que ouvir com atenção, sentindo finalmente o vento de outono que leva embora aquele verão infernal. Chama a atenção, evidentemente, ele ter um convidado de luxo como Caetano Veloso, e a bela regravação de Deixando o pago, cujos versos encerram este comentário.

“alcei a perna no pingo

e saí sem rumo certo
olhei o pampa deserto
e o céu fincado no chão
troquei as rédeas de mão
mudei o pala de braço
e vi a lua no espaço
clareando todo o rincão

e a trotezito no mais

fui aumentando a distância
deixar o rancho da infância
coberto pela neblina
nunca pensei que minha sina
fosse andar longe do pago
e trago na boca o amargo
dum doce beijo de china...”



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